sábado, 17 de maio de 2008

Ai, que pregui


''Não sou preguiçoso. Sou contemplativo'', disse Dorival Caymmi, certo dia, depois de tanto se sentir importunado por perguntas a respeito de sua, digamos, contemplação excessiva. Mesmo assim, o adorável menestrel do devagar- quase- parando, conseguiu resumir como a preguiça pode ser saudável e prazerosa. Caymmi é vanguarda. De uns tempos para cá, cultivar a preguiça virou moda. Uma onda de preguiçosos assumidos assola o mundo - só no ano passado foi lançada mais de uma dezena de livros sérios sugerindo desde a vadiagem ao boicote ao trabalho duro. As razões parecem óbvias. Cada vez mais gente chega á conclusão de que uma agenda lotada de tarefas a cumprir num mínimo espaço de tempo não é mais motivo de status, e sim uma fonte de frustações pessoais, além de porta escancarada para uma série de males, que vão da estafa aos ataques cardíacos.
Ninguém aqui está dizendo pra você jogar todo o trabalho pra cima e viver o resto da vida de papo pro ar. mas abrir espaço para momentos de preguiça pode ser um ótimo negócio. Tanto é que até mesmo árduos trabalhadores, como pesquisadores e cientistas, também chegaram a essa mesma conclusão. Eles agora dizem que uma boa dose de indôlência faz um bem danado para a saúde e, pasme, nos faz viver mais e melhor.
Preguiça? Como assim?
Vamos esclarecer uma coisa: preguiça é a arte de não fazer rigorosamente nada. Isso quer dizer nada de oficialmente produtivo, bem entendido. A hora da preguiça pode ser um momento de contemplação, como ensina Caymmi. Pode ser coçar as costas por horas a fio. Pode ser tirar uma soneca. Pode ser ainda ficar deitado numa rede olhando o céu e imaginando mil formas para as nuvens.
Afinal cada um faz nada do jeito que achar melhor. O que importa é apreciar esse momento de devaneio, recolhimento e quietude como algo que pode- e deve- ser incorporado a sua vida.
É bom lembrar falando aqui de fazer as coisas mais devagar, nem parar o que se está fazendo com o objetivo de ficar mais criativo e depois conseguir produzir mais e mais. Segundo o dicionário Aurélio, preguiça é justamente aversão ao trabalho, é indolência. É morosidade, lentidão, pachorra, moleza. Por definição assim a seco, a preguiça já carrega um estigma ruim, coitada.
É só você mesmo tentar fazer um exercício: você gosta de dizer aos quatro ventos que sente uma baita preguiça todo dia?
Diria ao seu chefe que é um sujeito preguiçoso?
Admitiria, numa boa, que não entregou um relatório porque estava curtindo aquela indolência?
Pois não se culpe. A má fama da preguiça é algo que vem passando de geração em geração e foi construída ao longo dos tempos, atingindo em cheio o Ocidente mais especificamente a partir da Era Cristã- sim, porque, na Grécia antiga, aqueles que ficavam largadões, dando asas ao livre pensamento, eram considerados seres especiais, que ficavam mais próximos do deuses.
Já a Bíblia traz inúmeras citações que dão conta da preguiça como algo perverso, a ser evitado.
''O que trabalha com a mão remissa empobrece; mas a mão do diligente enriquece. O que ajunta no verão é filho prudente; mas o que dorme na sega é filho que envergonha'', diz um dos Provérbios. Deus pode até ter descansado no sétimo dia, mas somente depois de uma árduo esforço nos seis dias anteriores. Sem contar que condenou Adão, Eva e sua prole a ''ganharem o pão com o suor dos seus rostos''. Um castigo e tanto, convenhamos. " Nesse caso, podemos pensar que o trabalho também nasceu de uma maldição. A própria palavra trabalho vem do latim tripalium, um instrumento de tortura, lembra Olgária Mattos, professora de filosofia da USP.
A preguiça é ainda um pecado capital, vizinho da luxúria. A lista dos pecados capitais foi esboçada pelos primeiros pensadores cristãos, aperfeiçoada no século 5 por Jõao Cassiano e fixada definitivamente pelo papa Gregório Magno, no fim do século 6. Nossa amiga preguiça foi a última a fazer parte da lista, acredite. Ela entrou no lugar da melancolia, quando, no século 17, a Igreja resolveu trocar uma pela outra, achando a melancolia um pecado um tanto vago demais.
Mesmo para as religiões orientais, que costumam ser mais condescendentes com as fraquezas humanas, a preguiça está em maus lençóis. ''A preguiça é uma mente confusa que se nega a fazer atividades virtuosas, uma vez que está motivada somente pelos prazeres desta vida''.
Para o budismo, a preguiça nada tem a ver com a produção de bens materiais. Ela está intimamente ligada a quem não pratica atividades espirituais - portanto ( e para a delícia daqueles que amam paradoxos), quem passa o dia inteiro falando ao celular, respondendo e-mails, fazendo reuniões e trabalhando feito doido, pode ser considerado um preguiçoso de carteirinha para os budistas. Já quem usa su tempo meditando e aquietando a mente - e isto pode ser feito até enquanto dormimos - não é um insolente, muito pelo contrário. Quem dedica horas do seu tempo descansando para recuperar as energias e depois continuar praticando ações que beneficiem os outros também não é nada preguiçoso.
'' Um certo monge tibetano morava em uma gruta com um grande arbusto na estrada. Ele passava o dia todo meditando e fazendo preces, por isso nunca tinha tempo de cortar o arbusto. Até o dia que a planta cresceu tanto que ele mal podia sair de casa. Se ele desperdiçasse seu tempo cortando o arbusto, aí, sim, seria preguiçoso'', diz a monja Kelsang Palsang. o raciocínio budista e simples: de que vale jogar fora todo o tempo precioso que temos na vida trabalhando somente para acumular riquezas se não vamos levar nada na hora da morte? '' Muitas pessoas achavam que os monjes eram preguiçosos, pois nao trabalhavam e passavam o dia todod na mendicância. Eles podiam não gerar riquezas materiais, mas geravam a paz.''
No século 15 o puritanismo, religiã que crescia na Inglaterra, propagava que quanto mais riquezas o cidadão acumulasse, maiores seriam suas chances de obter a salvação divina. Ou seja, a ordem era acordar cedo e trabalhar muito para edificar o caminho rumo ao reino dos céus. O primeiro sociólogo a fazer a ligação direta entre a cultura capitalista moderna e a religiosidade puritana foi o alemão Max Weber (1864- 1920). Para ele, os fundadores da moral puritana foram a base para a gênese da cultura capitalista. Com a Revolução Industrial e a consolidação final do capitalismo, realmente a situação de quem quisesse se entregar á leseira de vez em quando passou a ficar mais complicada: a ordem se tornou trabalhar, trabalhar. ''Uma estranha loucura está a apossar-se das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura consiste no amor ao trabalho, na paixão moribunda pelo trabalho, levada ao depauperamento das forças vitais do indivíduo, escreveu Paul Lafargue, genro de Karl Marx, que, em plena aurora do frenesi capitalista no século 19, denunciava a ideologia penitencial do trabalho como responsável pela infelicidade tanto da classe operária quanto, por extensão, da própria burguesia européia.
'' Numa sociedade como a nossa, que vive debaixo da égide do capital, as pessoas são mero instrumentos de acumulação. É como se não houvesse lugar para quem resolve ficar fora do mercado de trabalho, ainda que seja por breves momentos'', diz Olgária Mattos.
'''Mesmo no lazer, estamos contaminados por essa cultura do trabalho. Ficar em casa, ler, dormir ou se recolher para o descanso geralmente são consideradas opções para pessoas solitárias, pouco criativas e desinteressantes. Lamentavelmente, há uma cobrança geral por ter o que fazaer'', completa.
Prova disso são as pessoas que tiram férias e se queixam que voltaram ainda mais cansadas.Entupir-se de programas, passeios, visitas a museus, cinema, teatro e uma infinidade de atrações é como uma obrigação- é a reprodução da lógica do mercado de trabalho nas horas vagas.

Todas essas opções de entretenimento podem ser muito atraentes, mas elas não precisam preencher o tempo todo.

''Saborear o momento presente via reflexão, contemplação e devaneio é uma das mais genuínas formas de encontrar quietude interna, um grande prazer da vida. E vamos admitir que é bem mais difícil encontrar essa mesma quietude num shopping center ou um parque por exemplo'', diz Martin Seligman, psicolólogo americano da Universidade da Pensilvânia que estuda e pesquisa nada menos do que a tão sonhada busca pela felicidade.

Quem curte e cultiva a arte de não fazer nada tem bons motivos para comemorar. Os pesquisadores alemães Peter Axt e Michaela Axt, autores do livro ( The Joy of Lazyness) concluíram que: levantar cedo causa stresse e prejudica a saúde; uma soneca no meio do dia ajuda a prolongar a vida, e, se o objetivo for viver mais, então você deve o excesso de exercícios físicos. ''Assim como os animais, nós também precisamos poupar energia para assegurar uma vida longa e saudável. Devíamos fazer como os bichos: criar o hábito de bocejar mais, espreguiçar bastante para ajudar na circulação do organismo'', diz Peter Axt.

Além de ajudar a viver mais a moleza pode inspirar a genialidade.

''René Descartes não saía cedo da cama nem por um decreto. Deixaram ele ficar ali, pensando.Se ele tivesse levantado muito cedo, acabaria ocupado demais com tarefas rotineiras, e não teria tempo de perceber e propagar ao mundo a toeria de que existimos porque pensamos'', teoriza.

Sem falar de Caymmi, que, dizem, sequer saiu da rede para compor algumas das mais lindas canções de que se tem notícia.

Aderir a indolência é uam arte. E, como tal, deve ser feita sem procupações.

Caso contrário, ela não trará benefício algum nem para a mente nem para o corpo. Mas o que fazer então? Entregar-se de corpo e alma á frouxidão total dos músculos? Deixar de trabalhar? Não é bem assim. Até porque é bom lembrar que moleza demais é sinal de depressão.

Mas um bom passo para começar a admitir uma dose de preguiça gostosa na vida seria tentar diminuir o número de tarefas a cumprir diariamente- mais qualidade com menos quantidade. Demócrito, pensador grego do século 5 antes de Cristo, já dizia que ninguém pode ser feliz tentando fazer muitas coisas. ''Ocupe-se pouco para ser feliz'', escreveu.

Antes de dizer que não tem tempo para uma deliciosa vadiagem, repare de que forma você gasta suas horas. Quantas vezes checa e-mails? Quantos telefonemas inúteis? Ou horas xeretando sites na internet?

A verdade é que desperdiçamos muito tempo com muitas atividades sem o menor sentido. Segundo ''Sêneca'' (pensador romano) esse despedício é chamado justamente de ''preguiça agitada''. ''Quantas pessoas levam uma existência semelhante, que se chamaria com justiça de preguiça agitada?'', escreveu.

Imaginar a vida com espaço pra preguiça pode ser meio complicado. Toda vez que estamos de bobeira, olhando pro alto, a primeira sensação que bate é ''será mesmo que não tenho nada para fazer?''. E vem a danada culpa.

Mas, antes de assumir a culpa de que há milhões de afazeres no mundo á sua espera e levantar-se correndo da rede, vale uma relexão. São só alguns minutinhos, não se preocupe. Mas eles podem valer muito.

Trata-se de definir quais são suas prioridades na vida. É difícil, sim.

Mas é preciso saber o que é fundamental. Procure esquecer um pouco os milhões de compromissos e reflita sobre seus valores. O que seria mais importante nesse momento: cochilar um pouco depois do almoço ou correr para terminar um relatório que pode ser entregue só amanhã? Atender o celular, ou apreciar o pôr do sol que vai acabar em instantes? É preciso conferir os emails a toda hora?

Que sentido essas tarefas fazem na vida?

Essas perguntas questionam a própria existência e devem ser pensadas com absoluta calma. Responder essas e outras questões significa que está tomando as rédeas da sua vida. E essa é a essência para abrir espaço ao relaxamento, ao devaneio, á doce contemplação. Á preguiça enfim. Não há nenhuma fórmula pronta para chegar lá- o jeito é exercitar. Disse certa vez Santo Agostinho, um dos fundadores da filosofia medieval:'' O que é tempo? Se ninguém me perguntar , eu sei. Mas, se eu quiser explicar a alguém, eu não sei''.Taí uma coisa para você pensar - mas, antes, tire uns minutinhos para se entregar á indolência.

Livros:

O direito á preguiça. (Paul Lafargue)

A hora da preguiça. ( Gillian Borges)

O ócio criativo. ( Domenico de Masi)

O elogio ao ócio. ( Bertrand Russel)


XX.