segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Os componentes da banda

Adélia Prado
O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter investigado bem o meu quintal, porque hoje me gritou: "do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a senhora quer vender umas panelas pra ela." Me desgostou muito a forma de pedir, o pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas panelas? A distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do Osmar Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já sabendo que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e peguei a melhor panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a boa demais, servia pra tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a panela pura. Foi uma bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei enquanto não inventei um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa velha, toda escorada, que o dono do curtume deu para ela morar, já fez horta, jardim, os cacarecos são limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça, brinquinho de ouro na orelha desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não. Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração pedia que dissesse: olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo no que precisar, estou à sua disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra Dona Ester, porque no fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho pagam logo com uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse sem me dar amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me pedir cinqüenta cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra lá que seus quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim: "Dona Violeta é rica, pode muito bem esperar." Posso mesmo. Por que então, meu Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas fico dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E outras bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou chateada com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal, eu vivia acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro descanso. Agora envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus. Não chupo mais uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo errado, qualquer sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma de gozar dos frutos da terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita alegria, eu inclusive. Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de cinqüenta metros: "do-o-na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra nós aguar a horta?" Este batido durou um mês. Pedro até botou um trapo no muro pra não esfolar a borracha. Depois foi ficando chato. Queria lavar o carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com Dona Alvina. Bibia falava: "mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a senhora e o pai muito bobos." Não podia aplaudir a menina, mas por seguro matutamos: a voz das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa da Alvina para bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas onde vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de pagar a taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que ele arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro nem se lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a alegria dele é inteira.

Texto extraído do livro "Os componentes da banda", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1988, pág.19.

Dona Doida

Dona Doida
Adélia Prado
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

Quero minha mãe




Adélia Prado
Abel e eu estamos precisando de férias. Quando começa a perguntar quem tirou de não sei onde a chave de não sei o quê, quando já de manhã espero não fazer comida à noite, estamos a pique de um estúpido enguiço. Sou uma pessoa grata? Às vezes o que se nomeia gratidão é uma forma de amarra. Entendo amor ao inimigo, mas gratidão o que é? Tenho problemas neste particular. Se aviso: passo na sua casa depois do almoço, acrescento logo se Deus quiser, não sendo grata, temo que me castigue com um infortúnio. Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo preso com Ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à cauda? Uma esquizofrenia teológica, eu sei, quando fica tudo confuso assim, meu descanso é recolher-me como um tatu-bola e repetir até passar a crise, Senhor, tem piedade de mim. Até em sonhos repito, Senhor, tem piedade de mim, é perfeito. Sensação de confinamento outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muro, tudo me poda, me cerca de arame farpado. Coitada da minha mãe, devia estar nesta angústia no dia em que me atingiu: “trem ordinário” Com certeza não suportava a idéia, o fardo de ter-que-dar-conta-daquela-roupa-de-graxa-do-meu-pai, daquele caldo escuro na bacia, fedendo a sabão preto e ela querendo tempo pra ler, ainda que pela milésima vez, meu manual de escola, o ADOREMUS, a REVISTA DE SANTO-ANTONIO. Mãe, que dura e curta vida a sua. Me interditou um reloginho de pulso, mas não teve meios de me proibir ficar no barranco à tarde, vendo os operários saírem da oficina, sabia que eu saberia o motivo. Duas mulheres, nos comunicávamos. Tá alegre, mãe? A senhora não liga de ficar em casa, não? Posso ir no parque com a Dorita? Vai chamar tia Ceição pra conversar com a senhora? Nem na festa da escola, nem na parada pra ver eu carregar a bandeira ela não foi. Não dava para ir de “mantor” porque era de dia com sol quente, gastei cinqüenta anos pra entender. Teve uma lavadeira, a Tina do Moisés, que ela adorava e tratava como rainha. Sua roupa acostumou comigo, Clotilde, nem que eu queira, não consigo largar. Foi um tempo bom de escutar isto, descansei de vê-la lavando roupa com o olhar perdido em outros sítios, sentindo e querendo, com toda certeza, o que qualquer mulher sente e quer, mesmo tendo lavadeira e empregada. Tenho sonhado com a mãe tomando conta de mim, me protegendo os namoros, me dando carinho, deixando, de cara alegre, meus peitinhos nascerem e até perguntando: está sentindo alguma dor, Olímpia? É normal na sua idade. Com certeza aprendeu, nas prédicas às Senhoras do Apostolado, como as mães cristãs deviam orientar suas filhas púberes. Te explico, Olímpia, porque pode te acontecer na escola, não precisa levar susto, não é sangue de doença. Achei minha mãe bacana, uma palavra ainda nova que só os moleques falavam. Coitadas da Graça e da Joana, que nem isso ganharam dela. Morreu antes de me ensinar a lidar com as incômodas e trabalhosas toalhinhas. mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe, e o reino do céu é um festim, quem escondeu isto de você e de mim?

Casamento



Adélia Prado

Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como "este foi difícil""prateou no ar dando rabanadas"e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.

- Adelia Prado is a Brazilian writer !

Adélia Prado


Eu sempre sonho uma coisa que gera, nunca nada está morto. o que não parece vivo, aduba. o que parece estático, espera.

Adélia Prado____________